Sexta-feira, quando embarquei em Francisco Morato para Jundiaí, um senhor com uma bolsa cheia se pacotes de bala sentou-se e começou a puxar papo com um outro. Ele falava bastante alto e reclamava bastante da vida. Dizia que por causa da forte chuva não conseguia vender suas mercadorias nas ruas e estava indo até o terminal Vila Arens para trabalhar protegido.

O interlocutor então perguntou o preço e comprou dois pacotes de bala. O sujeito vendeu, mas disse que não gostava de oferecer o produto nos trens, pois enxerga muito mal e não consegue perceber a chegada do rapa.

Então a conversa desviou para religião. O marreteiro começou a citar o Apocalipse. Citava as trombetas, a abertura dos selos, pragas como o zica e mais um monte de desgraceira da bíblia ou do mundo real. Num discurso odiento, ele dizia que ir na igreja, seja ela qual for, não garante salvação diante à ira de Deus. O outro cara, que se declarou batista, só ouvia. De vez em quando concordava, mas a maior parte do tempo só balançava a cabeça, indicando que estava prestando atenção.

O senhor batista desembarcou na Várzea Paulista. O marreteiro continuou a conversa com um outro cara que estava sentado ao meu lado. O discurso do vendedor de balas começou a irritar-me.

Já estava me preparando para mandá-lo calar a boca, quando me dei conta que “ele poderia estar roubando, poderia estar matando”. Até poderia, se não tivesse dificuldade até para identificar as moedas do troco das balas ou se não precisasse encostar o nariz na bíblia para ler o Apocalipse.

E eu? Em janeiro recebi o que qualquer cristão chamaria de “uma grande benção” e os não-religiosos de “fruto de trabalho duro”.Como não é fruto do meu trabalho, prefiro classificar como benção mesmo. Uma benção tão grande que muita gente nunca consegue nem depois de uma vida dura de trabalho, então não me sinto a vontade para falar sobre isso.

Sendo assim, que direito eu tenho de censurar o marreteiro? A crença numa volta vingativa de Jesus Cristo, quando os filhos-da-puta perecerão e os fodidos, como ele, serão recompensados, é o que o faz sair de casa todas as manhãs sentindo-se uma pessoa digna. Então deixe-o falar. Ele não estava pregando. Estava só desabafando com pessoas dispostas a escutá-lo. Estava me irritando sim. Mas eu não precisava piorar a noite dele, e nem a minha.